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A Suprema Corte dos Estados Unidos e o direito à intimidade

Autor: Manoel Jorge e Silva Neto - Professor de direito constitucional nos cursos de graduação e pós-graduação (mestrado e doutorado) da Universidade Federal da Bahia. Professor-Visitante (Visiting-Professor) da Universidade da Flórida – Levin College of Law. Doutor e mestre em direito constitucional pela PUC/SP. Procurador do Ministério Público do Trabalho na Bahia. Membro da Academia Nacional de Direito do Trabalho, do Instituto Brasileiro de Direito Social Cesarino Júnior, da Academia de Letras Jurídicas da Bahia, do Instituto dos Advogados da Bahia, do Instituto Baiano de Direito do Trabalho e do Instituto Goiano de Direito do Trabalho. Ex-presidente da Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT)
Sumário: 1. Proposta do artigo 2. O direito à intimidade e a Constituição de Filadélfia de 1787 3. A jurisprudência da Suprema Corte norte-americana e o direito à intimidade. 3.1 O problema da aplicabilidade dos direitos fundamentais às relações privadas nos Estados Unidos. 3.2 Exame de uso de drogas por funcionários públicos. 3.3 Intimidade sexual e direito fundamental à procriação. 3.4 Intimidade sexual e uso de contraceptivos. 3.5 Direito à intimidade e aborto. 3.6 Direito à intimidade e orientação sexual. 3.7 Direito à intimidade e e-mail. 3.8 Direito à intimidade e escuta telefônica. 3.9 Direito à intimidade e inviolabilidade do domicílio. 3.10 Direito à intimidade e inviolabilidade do corpo. 4. Conclusão.

1 Proposta do artigo

 

Non of your business!” ou, simplesmente, em português: “Não é da sua conta!”.

O que se torna clara na expressão inglesa é a significação bem mais abrangente do que mero e simples aviso a incautos quanto a limites impostos pelo povo norte-americano em temas afetos à individualidade. A advertência representa muito mais do que isso; reflete, convictamente, a herança do comportamento de povos anglo-saxões, cuja preocupação com a intimidade ou vida privada chega mesmo a se materializar na reticência quanto ao prosaico beijo na face tão comum aos povos latinos.

Com efeito, nós, brasileiros, possuímos a atávica tendência de abraçar e beijar, quando essa espécie de atitude não é habitual em países como os Estados Unidos ou, pior ainda, na Inglaterra.

Mas o objetivo do artigo não está preso à emissão de juízo de valor positivo ou negativo acerca do comportamento de ingleses ou norte-americanos a respeito de beijos e abraços, tampouco concerne à análise antropológica da manifestação do povo ianque em torno ao direito à intimidade; não, o propósito, aqui, é examinar os mais distintos e importantes casos julgados pela Suprema Corte dos Estados Unidos a respeito do relevante direito fundamental.

Referido como o “direito de ser deixado a sós” ou “the right to be left alone” (Olmstead v. United States, 277 U.S. 438, 478 [1928], [com divergência do Juiz Brandeis]), o direito à intimidade nos Estados Unidos chega mesmo a abandonar a seara do catálogo de direito materialmente fundamental para traduzir exigência culturalmente arraigada ao povo ianque, razão mais do que suficiente para justificar a elaboração de ensaio a respeito do assunto.

 

2 O direito à intimidade e a Constituição da Filadélfia de 1787

 

Por mais estranho, insólito ou paradoxal que possa parecer, o exame da Constituição de 1787, bem assim das emendas que se lhe seguiram quase imediatamente, e também das mais recentes (como a Emenda XXVII, de 1992), revela algo espantoso: não obstante a notória preocupação do povo norte-americano com a proteção à individualidade, não há qualquer previsão explícita de tutela ao direito fundamental à intimidade, seja no texto original, seja em qualquer emenda subsequente.

Como explicar o fenômeno? Como entender que um direito tão caro àquele povo não tenha ainda merecido expressa referência em norma constitucional?

Em primeiro lugar, é necessário dizer que a Constituição norte-americana é rígida, isto é, a alteração de suas normas pressupõe processo legislativo bem mais solene e rigoroso que o inerente à edição de leis. Efetivamente, o artigo V da Constituição de Filadélfia acentua que, de sorte a ser emendada a Constituição, deve haver proposta de 2/3 do Congresso dos Estados Unidos (House of Representatives e Senate, que equivalem, respectivamente, no Brasil, à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal) ou 2/3 das Casas Legislativas de todos os Estados-Membros da Federação ianque. Ainda assim, a emenda somente será integrada ao texto da Constituição se, no mínimo, 3/4 dos Estados ratificarem a proposta aprovada pelo Congresso. É interessante informar que ao longo da história constitucional norte-americana nunca houve emenda proposta pelas Casas Legislativas estaduais, tendo sido o Congresso o único protagonista das iniciativas quanto às modificações formais na Constituição.

Em segundo lugar, parece que a resposta se relaciona à compostura do sistema jurídico dos Estados Unidos, precisamente porque a tarefa de atualização do direito objetivo se confere, em larga medida, ao Poder Judiciário, em cujo seio repousa a Suprema Corte, que tem acentuadamente ampliado sua legitimidade por meio de pronunciamentos judiciais relativos a temas reputados mais relevantes pela sociedade norte-americana, no mínimo, pelos últimos 200 anos.

Com efeito, por meio do procedimento denominado writ of certiorari, a Suprema Corte dos Estados Unidos não apenas efetiva direitos fundamentais, mas também “escolhe” os casos a tal respeito que tenciona resolver, o que corresponde, em grande parte, a algo semelhante ao que sucede no Brasil com a repercussão geral de questões constitucionais.

Em virtude da natureza sintética da Constituição de 1787, constata-se que apenas a Suprema Corte foi objeto de explícita referência no texto, ao passo que o artigo III tão só autoriza o Congresso a criar cortes inferiores e a determinar quais matérias seriam de competência desses tribunais, o que ensejou, até mesmo, iniciativa não exitosa de alguns membros do Parlamento no sentido de retirar competências de juízes federais para apreciação de casos relacionados à leitura bíblica nas escolas. Essa proposta gerou sérias controvérsias acerca do princípio da separação de poderes, mais ainda porque se reserva exclusivamente ao Poder Judiciário dos Estados Unidos o poder para interpretar o significado da Constituição.

Todavia, seria incorrer em raciocínio demasiadamente simplista e pedestre admitir que o Poder Judiciário – Suprema Corte dos Estados Unidos à frente – tem amplíssima discricionariedade em tema de construção do sistema jurídico, porque há muito direito objetivo em vigor naquele país, restringindo, desse modo, a liberdade construtora do juiz em sistema de Common Law. Logo, o sistema jurídico ianque não pode ser reputado como de Common Law “puro”, exatamente em virtude da existência, em número significativo, de leis federais, estaduais e locais, cuja obediência – e isso é óbvio – se impõe incondicionadamente a todos os magistrados.

Contudo, ao referirmos ao direito à intimidade, a tarefa construtora da Suprema Corte se impôs precisamente em razão da importância conferida pelos indivíduos acerca desse direito individual.

Por conseguinte, a Corte passou a desenvolver tutela específica ao direito à intimidade por meio da interpretação constitucional construtiva em torno da cláusula do devido processo legal, de modo específico da substantive due process of law clause.

Com evidência, são diversos os casos nos quais as decisões foram ancoradas, todas, indistintamente, na cláusula do devido processo legal em sentido substantivo, como, por exemplo, em Lawrence v. Texas (importante caso sobre relacionamento homossexual que será adiante examinado), Washington v. Harper (caso envolvendo condenado a pena de prisão que se recusou à submissão a tratamento médico contra uso de drogas); subsiste, enfim, expressivo número de casos em que a decisão se amparou na substantive due process of law clause de sorte a promover proteção ao direito à intimidade.

Outro dado a ser obrigatoriamente referido a respeito do direito à intimidade nos Estados Unidos é que, de forma distinta do que se sucede no Brasil, não há decisões que separem o direito à intimidade do direito à vida privada, como se vê no art. 5º, X, da Constituição brasileira de 1988. Lá não são diferenciados os direitos fundamentais, sendo todos eles tratados sob o signo right of privacy.

 

3 A jurisprudência da Suprema Corte norte-americana e o direito à intimidade

 

Antes de adentrar propriamente no estudo de casos examinados pela Suprema Corte ianque, convém pontuar que não deve ser desprezada a tradição constitucional dos Estados Unidos, na qual a Corte assume indisputável papel na tarefa de atualizar a realidade social e econômica aos comandos constitucionais, o que não deixa de despertar a atenção no Brasil, mais ainda se levado em conta que só recentemente o nosso Supremo Tribunal Federal passou a adotar semelhante comportamento.

Isso implica inegáveis e importantíssimos reflexos no altiplano da proteção à intimidade das pessoas, sendo certo que o Tribunal passou a exercitar, sem parcimônia, o poder de construção do sistema relativamente à tutela específica ao direito individual.

 

3.1 O problema da aplicabilidade dos direitos fundamentais às relações privadas nos Estados Unidos


É necessário se cercar de alguma cautela quando a questão se refere à aplicabilidade de direitos fundamentais nos Estados Unidos relativamente a entidades privadas.

Deveras, em virtude da característica compleição do sistema federativo norte-americano, por meio do qual se outorga larga faixa de atuação para os Estados federados, consolidou-se na Suprema Corte daquele país a ideia quanto à inadmissibilidade de incidência das normas constitucionais quando houver problema suscitado por particular em face de particular, principalmente porque compete às unidades federativas legislar sobre direito civil, o que não acontece no Brasil, conforme prevê o art. 22, I, da CF, cuja edição de lei versante sobre tal domínio normativo reclama atendimento às formalidades descritas no parágrafo único do referido preceptivo.

É a denominada State Action Doctrine, cuja terminologia é reputada incompreensível pelos próprios estudiosos do direito constitucional ianque2, mas que, em síntese, pode ser explicada como a doutrina que restringe a aplicabilidade das normas constitucionais protetoras de direitos fundamentais exclusivamente à ação estatal.

Essa tendência se consolidou a partir do julgamento dos denominados Civil Rights Cases, em 1883 (United States v. Singleton e United States v. Ryan, por exemplo), que, entretanto, posteriormente foi mitigada por força do aparecimento de duas exceções – já também consolidadas na jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos. São elas: public functions exception e a entanglement exception 3.

O que significam?

Quando a parte suscita a public function exception, pretende demonstrar o absoluto cabimento da incidência de normas jusfundamentais a problema ocorrido entre particulares, isso quando a forma de atuação do indivíduo se encerra em autêntica ação estatal. Muito embora a formulação atual da tese tenha se dado no julgamento do caso Jackson v. Metropolitan Edison Co. (1974), a fundamentação original ocorreu em Marsh v. Alabama (1946), envolvendo interessante situação de empregada adepta da Religião Testemunha de Jeová, que distribuía panfletos do segmento no âmbito da vila construída pela empresa, no caso, a Golf Shipbuilding Corporation. O problema conduzido à Suprema Corte estava relacionado à possibilidade de o Estado processar criminalmente a empregada. A Corte concluiu que administração de cidade é assunto tipicamente estatal, devendo ser realizada de acordo com as prescrições constitucionais4.

A outra exceção admitida é a entanglement exception. Significa tão só que a Constituição será aplicada em tema de relação entre particulares quando o governo, de modo afirmativo, autorizar, estimular ou facilitar a conduta privada que viola as normas constitucionais.

Foi o ocorrido em Shelley v. Kraemer (1948), quando a Corte esclareceu que a Constituição deveria ser aplicada porque o Estado facilitou a ocorrência de práticas discriminatórias.

Surpreendentemente, no entanto, no caso Brentwood Academy v. Tenessee Secondary School Athletic Association (2001), a Suprema Corte não utilizou as terminologias public function nem entanglement para viabilizar a incidência de direitos fundamentais no campo das relações privadas, circunstância que levou Erwin Chemerinsky a concluir que “[...] isso indica talvez que haja uma terceira exceção distinta das outras [...]”5.

Portanto, seja por meio da public functions exception, seja em virtude da aplicação da entanglement exception, ou até de uma terceira solução mais recentemente proposta pela Suprema Corte, o que deve ser ressaltado é que, tratando-se de estudo sobre a jurisprudência daquele Tribunal relativamente ao direito à intimidade, seria verdadeiramente imperdoável omitir as saídas encontradas para a defesa de direitos individuais nos Estados Unidos porque, seja lá, ou aqui no Brasil, nota-se a acentuada tendência de transgressão a tais direitos por entidades privadas, circunstância decorrente do crescimento do poder econômico das corporações, desenvolvendo, assim – e infelizmente –, duras práticas violadoras de direitos dos trabalhadores e dos consumidores, aí presente o desrespeito ao direito à intimidade desses indivíduos.

Assim, passemos à análise dos casos mais interessantes e relativos a julgamentos daquela Suprema Corte sobre o direito à intimidade.

 

3.2 Exame de uso de drogas por funcionários públicos

 

O tema obviamente não ensejaria discussão sobre a aplicabilidade de normas constitucionais a entes privados, porquanto afeto o problema à exigência formulada pelo Estado em face de servidores públicos.

A questão não é pacífica nos Estados Unidos; a decisão da Suprema Corte, na hipótese, por 5 votos a 4, entendeu justificada a realização do exame, não se tratando de situação que envolvesse ofensa às proibições constantes da Emenda n. 4.

Foi o ocorrido em National Treasury Employees Union et al. v. Von Raab (1989), oportunidade em que a Corte firmou pronunciamento no sentido de compreender que o interesse da alfândega norte-americana na preservação da integridade de funcionários armados e de todos outros envolvidos na repressão ao tráfico de drogas pesaria mais do que problemas relacionados à intimidade.

Destaque-se, todavia, que a decisão não conferiu propriamente “cheque em branco” à administração federal para o propósito de impor o exame a todos os funcionários públicos federais.

Evan Hendricks, Trudy Hayden e Jack Novik esclarecem que, no julgamento, houve até mesmo divergência suscitada pelo Juiz Scalia, para quem o serviço alfandegário não lograra demonstrar sequer a existência de problema relacionado ao uso de drogas por servidores do órgão, ou mesmo que o exame de urina pudesse levar a algum fim prático, concluindo que o procedimento se constituíra “[...] em espécie de imolação à intimidade e à dignidade da pessoa humana em oposição simbólica ao uso de drogas [...]”, acrescentando que “[...] o simbolismo, ainda que simbolismo para uma causa tão elevada quanto a repressão do uso de drogas ilegais, não poderia, por outro lado, tornar válida a medida desproporcional”.6

 

3.3 Intimidade sexual e direito fundamental à procriação

 

A Suprema Corte tem entendido que subsiste o direito fundamental à procriação.

Não foi, no entanto, o entendimento inicialmente sufragado, tanto que em Buck v. Bell (1927), os julgadores concluíram em prol da admissibilidade da tese estatal, consagrando o direito do Estado para consumar esterilização involuntária de indivíduos com deficiência mental, com o que autorizou o Estado da Virgínia a esterilizar Carrie Buck, que possuía apenas 18 anos na época.7

Contudo, em Skinner v. Oklahoma (1942), a Corte, embora não tenha expressamente refluído quanto à tese adotada em Buck, declarou a inconstitucionalidade de lei do Estado de Oklahoma que permitia aos tribunais estaduais ordenarem a esterilização de condenados duas ou mais vezes por crimes considerados “moralmente torpes”.8

O Juiz Douglas, ao prolatar sua decisão, registrou que “[...] esse processo toca uma delicada e importante seara dos direitos humanos. O Estado de Oklahoma priva determinados indivíduos de um direito que é básico à perpetuação da raça humana: o direito de ter descendentes”.9

 

3.4 Intimidade sexual e uso de contraceptivos

 

Foi no conhecidíssimo caso Griswold v. Connecticut (1965) que a Suprema Corte declarou a inconstitucionalidade de lei estadual que houvera proibido a distribuição e o uso de contraceptivos.

A lei estadual chegara a prever multa de não menos de $ 50,00 (cinquenta dólares) e prisão por não menos de 60 dias e não mais do que 1 ano, e todos aqueles que auxiliassem, sugerissem ou incitassem o uso de contraceptivos igualmente estariam incursos nas mesmas penas.

O caso envolveu a prisão de Estelle Griswold, Diretora-Executiva da Liga de Planejamento Familiar do Estado de Connecticut.

O mais interessante dessa decisão foi observar que o Juiz Douglas, diferentemente da tradição instalada na Suprema Corte e relativa ao reconhecimento do direito à intimidade como natural decorrência do substantive due process of law, resolveu concluir que o direito individual promanava implicitamente do Bill of Rights.10

Também merece registro o fato de que, na hipótese, a decisão não se ateve a questões relacionadas ao direito de evitar filhos, mas simplesmente à garantia destinada a proteger o quarto do indivíduo contra a intromissão da polícia, isto é, a intimidade da pessoa.

Após Griswold, outro rumoroso caso foi decidido pela Corte: Eisenstadt v. Baird (1972), quando determinado indivíduo foi processado em razão de fornecer uma caixa de contraceptivo a uma mulher.

O Juiz Brennan, ao decidir a questão, esclareceu:

[...] se é que o direito à intimidade significa alguma coisa, é o direito do indivíduo, casado ou solteiro, de se ver livre contra intromissões estatais indevidas em assuntos tão fundamentalmente afetos à pessoa como a decisão de ter ou evitar filhos [...].11

 

3.5 Direito à intimidade e aborto

 

No famoso caso Roe v. Wade, a Suprema Corte reconheceu o direito ao aborto como decorrência do direito à intimidade.

Sendo o caso-chave para solução de todas as controvérsias do passado e que ainda persistem nos Estados Unidos sobre o direito ao aborto, evidentemente que Roe tem despertado a viva curiosidade de estudiosos e juristas norte-americanos, não sendo poucos os artigos e estudos acadêmicos a respeito.

De modo específico, a Corte terminou por adotar entendimento segundo o qual a maternidade, ou número excessivo de filhos, pode representar angústia e sofrimento para a vida da mulher, com possíveis repercussões em sua saúde física e mental, tendo rejeitado a tese do Estado de que o feto é pessoa e que havia interesse absoluto na proteção à vida. E assim se pronunciou em razão de não haver norma constitucional alguma a partir da qual se pudesse, de qualquer forma, ser subentendido que o termo “pessoa” poderia significar a inclusão de “fetos”12.

A decisão final foi na linha da admissibilidade do aborto, desde que consumado até o término do primeiro trimestre de gestação, quando o Estado não poderia impor qualquer restrição ao livre arbítrio da mulher, mas sim apenas regular a prática do aborto, tal como disciplinados também outros procedimentos médicos. No segundo trimestre, o Estado ainda não pode intervir para proscrever a prática do aborto, mas pode regular a prática de forma que esteja relacionada à saúde da mulher, admitindo-se, então, contenções ao livre arbítrio feminino. Finalmente, no que se relaciona ao terceiro e último trimestre de gestação, o Estado pode proibir o aborto, exceto para preservar a vida ou a saúde da mãe13.

Por fim, merece registro o pronunciamento da Corte segundo o qual “[...] forced motherhood is sex inequality [...]”, ou seja, “maternidade forçada é discriminação sexual”.

 

3.6 Direito à intimidade e orientação sexual

 

A Suprema Corte dos Estados Unidos protege a autodeterminação em tema de orientação sexual?

O primeiro caso examinado foi Bowers v. Hardwick (1986), em que Michael Hardwick foi preso, em quarto de hotel, por manter relação sexual com pessoa do mesmo sexo.

O caso se desenvolveu da seguinte forma: o policial se dirigiu ao hotel onde se encontrava Hardwick para tratar de assunto completamente estranho à situação, tendo sido atendido por uma camareira que, ao recebê-lo na porta, indicou-lhe em qual apartamento encontrava-se Hardwick.

Alegando ter testemunhado relação entre pessoas do mesmo sexo, o policial prendeu Hardwick por violar e lei do estado da Geórgia sobre sodomia, que previa o seguinte: “A pessoa comete crime de sodomia quando mantém qualquer ato sexual que envolva o órgão sexual de uma pessoa e a boca ou o ânus de outra”.14

A Suprema Corte, numa decisão por 5 a 4, julgou válida a lei estadual, fixando a exegese de que as conclusões do Tribunal relacionadas à intimidade sempre estiveram vinculadas a assuntos afetos à família e à procriação, e atividade homossexual não se encaixava no contexto desses direitos.15

O pronunciamento em Hardwick foi posteriormente revisto em Lawrence v. Texas (2003), quando dois homens foram condenados e multados em $ 200,00 (duzentos dólares), de acordo com lei do Estado do Texas, que proibia “intercurso sexual desviado” (deviate sexual intercourse).

O Juiz Kennedy, sintetizando a decisão da Corte, registrou que

[...] as leis [...], no caso, são dispositivos que pretendem nada mais do que proibir determinado ato sexual. As penalidades e propósitos, todavia, têm muito maior alcance, atingindo a mais íntima conduta humana, o comportamento sexual, e no local mais reservado, a casa. [...].16

 

3.7 Direito à intimidade e e-mail

 

Surpreendentemente, caso julgado no ano de 1877 é indicado como parâmetro para decidir hipóteses de vasculhamento de comunicação eletrônica. Foi precisamente em Ex parte Jackson, 96 US 727 (1877), cuja controvérsia dizia respeito ao envio, pelo correio dos Estados Unidos, de correspondência-circular relativa a loteria, e o responsável pela remessa foi processado em virtude de proibição existente em norma federal. No caso, houve recurso movido contra a proibição, tendo a Corte estadual rejeitado o pleito sob o fundamento de que o Congresso teria poder para restringir o envio da correspondência, diante de determinado conteúdo.17

Isso tem levado alguns doutrinadores norte-americanos à defesa do entendimento de que, assim como as cartas e tal como concluído em Ex parte Jackson, o e-mail não seria indevassável, exceto se fosse devidamente criptografado.18

 

3.8 Direito à intimidade e escuta telefônica

 

Problema de real densidade, seja nos Estados Unidos ou no Brasil, a escuta telefônica historicamente foi admitida na jurisprudência da Suprema Corte daquele País, conforme se pode observar no famoso caso Olmstead v. United States (1928), não à toa responsável pela própria definição do que poderia ser entendido como direito à intimidade, de acordo com a genial formulação teórica do Juiz Brandeis.

Todavia, quando do julgamento do caso Katz v. United States (1967), a Suprema Corte resolveu rever o pronunciamento adotado em Olmstead, tudo com o propósito de considerar inconstitucional a escuta eletrônica e gravação de conversa havida entre duas pessoas, ainda que a parafernália tenha sido instalada fora da residência dos que sofreram a escuta, de acordo com a redação da Emenda n. 4 à Constituição de Filadélfia.19

Muito interessantes as observações em Katz trazidas pelo Juiz Harlan, inclusive para a solução de infinidade de casos ocorridos com pessoas famosas no Brasil ou no exterior, quando, em público – logo à vista de quem quiser ver –, pretendem consumar comportamento que todos só realizam no recôndito da alcova:

Existe uma dupla exigência: primeiro que a pessoa tenha apresentado uma atual expectativa de intimidade e segundo que a sociedade esteja preparada para reconhecer a expectativa como “razoável”. Logo, a casa da pessoa [...] é local onde há expectativa de exercitar a intimidade [...]. Por outro lado, conversas ao ar livre não seriam protegidas, porque não seria “razoável” a expectativa quanto ao exercício da intimidade em tais circunstâncias20.

 

3.9 Direito à intimidade e inviolabilidade do domicílio

 

Estudiosos do direito constitucional em todo o mundo fazem a inexorável correlação entre intimidade e inviolabilidade do domicílio, e tal entendimento se faz presente em diversas Cortes Constitucionais, dentre as quais a brasileira e a norte-americana.

Nos Estados Unidos, a proteção à casa como decorrência da tutela à intimidade ficou evidente em Kyllo v. United States (2001), quando policiais resolveram instalar dentro de veículo de um deles detector térmico, a fim de constatar se Danny Kyllo estava plantando maconha dentro de casa. Realmente ficou comprovada a iniciativa para o tráfico de drogas, tendo Kyllo argumentado que a investigação policial ofendeu o texto da Emenda n. 4, quando, após sucessivos recursos a instâncias estaduais e federais, a Suprema Corte deliberou que, no caso de o Estado se utilizar de tecnologia que não está ao alcance de todos, de sorte a explorar detalhes da casa da pessoa, a investigação não é razoável sem mandado judicial.21

Contudo, constitucionalistas daquele País articulam severas críticas à decisão extratada pela Suprema Corte, e isso sob dois principais fundamentos: primeiro, porque a decisão faz referência explícita a uso de tecnologia para explorar detalhes da casa, deixando sem proteção estabelecimentos comerciais e outras propriedades com caráter não residencial, mais ainda porque a Corte ainda não sufragou entendimento abrangente acerca do signo “casa”, tal como ocorre com a Suprema Corte brasileira; segundo, quando alude a tecnologia que não esteja ao alcance de todos, tornando presumivelmente legítima a utilização de parafernália eletrônica para invadir a intimidade das pessoas em suas casas quando a tecnologia se tornar acessível a um conjunto mais expressivo de indivíduos.

 

3.10 Direito à intimidade e inviolabilidade do corpo

 

Obviamente, a intimidade também se faz apta para proteger a inviolabilidade do próprio corpo, já que ninguém pode ser obrigado a expor-se contra a sua vontade, ou mesmo a submeter-se a qualquer procedimento médico-cirúrgico de forma involuntária.

Foi o que se tentou fazer com um indivíduo chamado Lee, visto que a Corte do Estado da Virgínia o obrigou a se submeter à cirurgia para a remoção de projétil de arma de fogo alojado em seu tórax. Os promotores argumentaram a respeito da necessidade de retirar o projétil a fim de provar que era autor de roubo, oportunidade em que fora alvejado por policial. Ele apelou indicando violação direta à Emenda n. 4, tendo a Suprema Corte provido o recurso sob o fundamento de que eventual prova de inocência ou culpabilidade não deve justificar a submissão de alguém, contra sua própria vontade, a intervenção cirúrgica, notadamente em razão dos riscos acarretados pelo procedimento.

 

4 Conclusão

 

Vimos insistentemente referindo que sem cultura constitucional não chegaremos a bom porto no Brasil.

Seja porque as normas constitucionais conferem primazia aos interesses maiores da coletividade, seja porque, como decorrência imediata ou mediata desta primazia, se consolidará, no Brasil, com o beneplácito devido do tempo, efetiva proteção aos direitos sociais e individuais, converte-se em tarefa indeclinável o exame das decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos, cuja jurisprudência serve de espelho para toda e qualquer corte constitucional imbuída com o cumprimento sincero de sua missão, que não é outra senão a de fazer da constituição instrumento cotidiano de proteção aos mais elevados direitos do ser humano.

 

Referências

 

Brenner, Susan W. Constitutional rights and new technologies in the United States. In: Leenes, Ronald; Koops, Bert- Jaap; De Hert, Paul. Constitutional rights and new technologies – A comparative study. Tilburg: T.M.C. Asser Press, 2008.

Chemerinsky, Erwin. Constitutional law – Principles and policies. 3. ed. New York: Aspen Publishers, 2006.

Hendricks, Evan; Hayden, Trudy; Novik, Jack D. Your right to privacy: a basic guide to legal rights in an information society. 2. ed. Chicago: Southern Illinois University Press, 1990.

Leenes, Ronald; Koops, Bert- Jaap; De Hert, Paul. Constitutional rights and new technologies – A comparative study. Tilburg: T.M.C. Asser Press, 2008.

Lowe, E. P. Emailer beware: The fourth amendment and the electronic mail. [S.l.: s.n.], [2004?].

Silva Neto, Manoel Jorge e. Human rights, fundamental rights, basic guarantees and the Brazilian Constitution of 1988. Salvador: JM Editora, 2007.

 

2 Cf. Chemerinsky, 2006, p. 507.

3 Ibidem, p. 517-538.

4 Ibidem, p. 520.

5 Ibidem, p. 517, nota de rodapé n. 51.

6 Cf. Hendricks; Hayden; Novik, 1990, p. 48.

7 Cf. Chemerinsky, 2006, p. 814.

8 Ibidem, p. 814.

9 Ibidem, p. 814.

10 Ibidem, p. 815.

11 Ibidem, p. 817.

12 Ibidem, p. 820-821.

13 Ibidem, p. 820-821.

14 Ibidem, p. 844.

15 Ibidem, p. 845.

16 Ibidem, p. 845-846.

17 Cf. Brenner, 2008, p. 233-234.

18 Cf. Lowe, p. 28.

19 Cf. Brenner, 2008, p. 235.

20 Ibidem, p. 235.

21 Ibidem, p. 242.

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